Nós matamos o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana

 


"Mas não me olhes como se eu tivesse culpa, Cão Tinhoso! Desculpa, mas eu tenho medo dos teus olhos..."

A coletânea de contos de Honwana é uma obra bastante representativa da história de Moçambique. Após 400 anos de colonização, não é possível fugir dos efeitos de toda a violência, segregação e desigualdade que isso constroi na sociedade. E é importante entender que Honwana foi militante do movimento FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), e que este livro foi publicado durante sua prisão política. Então, é evidente que a obra não tenta fugir desses elementos, muito pelo contrário: eles são elementos absolutamente constitutivos da trama. Mas, ele não se encerra nisso. É muito mais do que isso.

Sempre que lemos literaturas africanas, ou de lugares historicamente marcados por opressão, invasão e colonialismo, esperamos que a obra seja um retrato disso, seja uma obra que nos ensine sobre a história dramática deste país. Não se oferece o espaço para literaturas africanas para que sejam literatura, acima de tudo, simplesmente obras literárias que refletem o desejo humano por imprimir ideias no papel. E este livro, mesmo sendo profundamente político e radicalizante, é mais humano do que qualquer coisa. É literatura em sua forma mais complexa, real.

Honwana não nos deixa pensar em sua literatura apenas como um retrato de seu contexto. É claro, contexto é inegável, é indissociável de qualquer obra artística. Mas é como qualquer obra de qualquer lugar, é contexto, não texto. A obra de Honwana nos faz identificar aquilo que é verdadeiramente o caráter da literatura, aquilo que é humano, realmente. Que nos faz uma comunidade, com pensamentos, sentimentos, ideais.

"- Sim, meu filho, há o tempo, o tempo... Tudo há de mudar, tudo há de melhorar..."

Nós matamos o cão tinhoso reúne 8 contos (graças à editora Kapulana, que acrescentou Rosita, até morrer à coletânea). Cada um desses contos descreve momentos da vida de personagens diversos, muitos deles crianças, aprendendo a enxergar a realidade, entender o mundo, as dinâmicas que regem as relações sociais. E mesmo aqueles que são adultos pegam-se tentando destrinchar, fazer sentido das camadas da realidade que são complexas e incoerentes.

O conto inicial, homônimo ao livro, é um dos mais intrigantes, não a toa dá nome ao livro e o estreia. Conta a história de um conjunto de crianças que são apontadas para matar o Cão Tinhoso, cachorro velho, doente (tinhoso vem de tinha, uma doença de pele, não tem a ver com o diabo) que ronda os arredores da cidade e da escola onde estudam. Isaura, a única menina, tenta com todas suas forças proteger o cão, mas, evidentemente, como indica o título, não consegue.

O cão pode ser uma simbologia poderosa da nação moçambicana, contaminada (como o cão é contaminado por tinha) pelo colonialismo quatrocentão, sendo morta pela própria população que se assimila, por falta de opção melhor, à dinâmica construida por um império invasor. E a confissão do título, nós matamos o cão tinhoso, expressa essa participação dos próprios sujeitos nessa matança de um país que era seuLO

Mas as histórias vão além. Os contos desse livro compõem uma poderosa narrativa complexa, que através de diversas perspectivas, diversos aspectos da vida, descrevem a forma como a subjetividade é atravessada por dinâmicas políticas e sociais.

"Meu filho, tem de haver uma esperança! Quando um dia acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho, temos de ir arranjar forças para continuar a sorrir e continuar a dizer 'isso não tem importância'."

É importante ressaltar o papel da escrita em português. Não é acidental, não é apenas uma escolha pragmática. É uma escolha ativa, porque o livro nasce como uma forma de questionar e demonstrar as mazelas da imposição de Portugal em Moçambique (quem aí se identifica? rs). E, para fazer com que seu opressor entenda o que você está dizendo e mostrando-lhe, você precisa falar em uma língua que ele entenda.

Além disso, o racismo é um elemento igualmente essencial da história. Há um conto, As mãos dos pretos, em que o personagem, um menino, questiona-se por que as mãos dos pretos são mais claras que o restante de suas peles. E as respostas que os adultos a seu redor lhe dão, em especial os brancos, são completamente determinadas por ideários racistas, que tentam justificar determinadas formas de opressão a essas pessoas. No entanto, ao final, sua mãe lhe dá uma justificativa que subverte todo esse imaginário:

"(...) foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens".

Este livro é marcado por diversas formas de opressão, de divisão da sociedade com base em características superficiais, mas que determinam o lugar de cada um no mundo. Mas, mais do que isso tudo, é marcado pela esperança. Pelo pensamento de que as pessoas são responsáveis pelo destino que é traçado para elas mesmas, mas para suas sociedades também. E isso, apesar de parecer angustiante, desesperador, também é extremamente esperançoso. Honwana retira a responsabilidade de nossas vidas de seres acima de nosso controle, e nos presenteia com a percepção de que nós também somos responsáveis, para o bem ou para o mal, por ela.

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