Hot Sul, de Laura Restrepo
"(...) mientras estuve en libertad, mi meta era borrarme lo latino como si fuera una mancha, y desde que estoy presa me ando volviendo una fundamentalista de la latinidad."
Comecei a ler Hot Sul em agosto, leitura obrigatória de uma disciplina do mestrado sobre feminismos transnacionais. Digo isso porque talvez minhas opiniões sejam contaminadas pelo peso da obrigatoriedade da leitura. É extremamente importante destacar aqui: esta leitura não foi por prazer. O que não necessariamente implica que não tenha sido prazerosa em momento algum, pois foi, às vezes. Mas não sei se teria sido uma leitura que eu manteria até o final se não fosse pela disciplina.
Hot Sul é uma narrativa complexa, longa e cheia de reviravoltas e mudanças de perspectiva, cenário e narradores. Acompanhamos três personagens principais, narradores parciais e tendenciosos contando suas histórias de vida que aos poucos se vão emaranhando.
Maria Paz, uma mulher colombiana (como a autora) que está na prisão desde o primeiro momento em que aparece. Ela conta sua história a partir de seus manuscritos, dirigidos ao outro narrador, Cleve Rose. Ela o conheceu na prisão, ele foi seu professor de escrita criativa ali, e é com ele que Maria Paz aprende a importância e o valor da escrita para qualquer pessoa, mas em especial para aquela que foi privada de tudo e tem sua vida podada pelo sistema prisional, mas até mais do que isso, pelo Estado que odeia mulheres, imigrantes e, mais ainda, mulheres imigrantes.
Cleve Rose, o professor, branco e americano, mas falante de espanhol (acredite, isso tem relevância, em especial para Maria Paz) conhecemos através de seus cadernos. Cleve é um rapaz inteligente, sensível, autor de histórias em quadrinho. Ele e Maria Paz constróem uma conexão especial ao longo de seu trabalho na prisão, que infelizmente não dura muito.
E, por fim, o personagem mais interessante em minha opinião: Ian Rose, pai de Cleve. Dono de três cachorros, Dix, Skunko e Otto. Ian é um tipo rough around the edges, mas amoroso, muito próximo e orgulhoso de seu filho e amante de seus cachorros. Conhecemos Ian através de uma misteriosa entrevista, único momento da história que se passa no presente cronológico, já que as outras duas perspectivas são passadas, sendo trechos escritos pelos outros dois personagens em momentos anteriores. Não sabemos, no entanto, quem é a narradora desse momento, já que esses trechos são narrados pela entrevistadora misteriosa (que só descobrimos que é mulher lá pelos 80% do livro, e só!).
"- Vístase, mamá, que nos vamos de aquí - le anuncié a Bolivia.
- ¿Pero adonde, hija?
- A América - le dije -. Todavía no hemos llegado.
- Pero si esto es América, mi linda - me dijo.
- No me mienta, mamá, esto no es América."
Aqui estão os pontos principais dessa história:
1. Imigração: a história aborda questões pesadas, profundas e intensas a respeito da imigração, em específico a imigração de latinos para os EUA. Maria Paz, sua irmã Violeta e sua mãe Bolivia são colombianas, e Bolivia luta muito para conseguir imigrar para os EUA, com a perspectiva de que o sonho americano salvaria suas vidas. Chegando lá, Bolivia passa por maus bocados e suas filhas, ao chegarem, encaram a realidade de que o sonho americano nada mais é do que um tremendo pesadelo, em especial para mulheres latinas.
Maria, já adulta, "resolve" sua vida casando-se com Greg, um policial eslovaco que, honestamente, não é a pessoa mais interessante ou relevante para a história. Sua relevância reside neste singelo fato: ele é brutalmente assassinado. Maria Paz é culpada por isso e vai presa. É na prisão que ela descobre, realmente, que o lugar de onde ela vem e a língua que ela fala são os piores crimes que ela poderia cometer em um país que odeia tudo isso.
2. Cárcere: para mim, este era um dos pontos mais interessantes da história, até que ele acaba em um dado momento. Maria Paz conta, em um primeiro momento, sua vida até chegar ali. Nisso, ela nos mostra as violências do cárcere, em especial aquelas que afetam as mulheres latinas dali. O que mais me marcou (lembrem-se: eu sou linguista) foi a proibição, na prisão, de que falassem espanhol, inclusive com as visitas. As pobres visitas, mães desoladas, imigrantes, com filhas presas em outro país, sendo proibidas de falarem suas próprias línguas, suas formas de conexão sendo cortadas, suas formas de existir no mundo, impedidas.
Para mim, este é o grande talento da Laura Restrepo com esse livro. Ela é capaz de destrinchar, materializar e trazer à vida íntima os efeitos do imperialismo, do soft power e da violência de gênero.
3. Gênero: para mim, essa história é sobre gênero. Os homens dessa narrativa são todos inseguros, frágeis com alguma questão. O que não significa que são todos violentos ou ruins, Cleve e Ian são genuinamente boas pessoas, amáveis e gentis, o que faz com que suas inseguranças sejam pontos fortalecedores de seus caráteres. Mas a história tem um grande vilão, Sleepy Joe, cunhado de Maria Paz e com quem ela tem uma relação adúltera. Este homem é o homem mais violento e odioso da história, ao ponto de ser sádico (não é um exagero).
Este personagem é uma simbolização às vezes até quase exagerada dos homens forjados na misoginia, na violência de gênero, na masculinidade frágil. Ele representa tudo aquilo que a misoginia fabrica nas pessoas, insere em suas cabeças e não sai por nada, especialmente em homens frágeis, inseguros e competitivos.
Mas temos também Mandra X, a personagem que contrapõe o que Sleepy Joe traz à narrativa. Ela é uma líder de um dos clãs da prisão em que vive Maria Paz. Ela é uma mulher forte, poderosa no cárcere e violenta, mas amorosa também, cuidadosa com Paz. Ela é um contrapeso essencial para essa história.
"¿Imagina? Ahí en ezsas mazmorras vive una criatura que se atreve a soñar, a levantar las banderas del viejo sueño."
Mas, então, por que eu não consegui gostar tanto desse livro?
Não foi apenas pela obrigação de leitura, como eu disse acima. A questão aqui é que esse livro se propõe a fazer uma das coisas mais interessantes, na minha opinião, que a literatura pode oferecer ao leitor: múltiplos narradores parciais, não-confiáveis. Mas a história simplesmente não progride. Parece que ela não caminha até que já esteja nos 80% do livro. Ela vai e volta, não de um jeito Virginia Woolf, mas de um jeito que trunca a narrativa, fica maçante, cansa. A sensação é de que você lê, lê, lê e o tempo da narrativa não avança. São aprofundados detalhes e mais detalhes sobre a vida de cada um dos personagens, até o advogado da Maria Paz. Mas a história não anda.
Eu sinto que a autora tentou abraçar muitas coisas de uma vez, muitos modelos literários, uma história complexa e intricada, cheia de emaranhamentos e complicações, e se enrolou no caminho. Em um momento ou outro tem um pouco de humor, de reviravoltas, de coisas interessantes, mas isso não é suficiente para carregar o enredo. Ele parece que fica jogado de vez em quando, sem caminhar, até que ela se lembre de que ele ficou para trás e volte para ele.
Talvez Hot Sul não seja o livro pra mim, mas não é uma leitura da qual eu me arrependa. Não me apaixonei pelo livro, não me apaixonei pela narração, mas gostei dos personagens e fiquei interessada em saber quais seriam seus finais, em especial a relação entre Ian Rose e Maria Paz foi, para mim, a relação mais interessante e querida por mim ao longo do livro. Mas foi um processo longo até o fim desse livro, e foi um alívio terminá-lo.
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