Babel, de R. F. Kuang
"But that's the great contradiction of colonialism. (...) It's built to destroy that which it prizes most"
Babel, de R. F. Kuang foi, talvez, o meu monte Everest de 2024. Não porque seja uma leitura difícil, ou densa demais. Na verdade, a leitura é bem intuitiva, interessante e cativante. Mas porque o livro tem 544 páginas e eu sou professora e não tenho tempo de ficar lendo como eu gostaria rs. A verdade é que, se dependesse só de mim, da minha vontade e do meu gosto por esse livro, poderia ser que eu lesse esse livro em poucas semanas.
Mas eu terminei, finalmente, o livro. Me custou em torno de 2 meses, aproximadamente 73 dias, muitas e muitas pausas em que eu tive que ler outras coisas (por trabalho, pelo mestrado etc.) e muita força de vontade. E valeu cada esforço, cada dia em que eu atrasei uma leiturinha de obrigação para ler este livro, cada post-it usado para destacar trechos (e foram MUITOS), cada lágrima derrubada, e cada dia que eu passei pensando que eu só queria terminar logo. Porque o final desse livro é absolutamente maravilhoso. Na verdade, não só o final. Se você lê livros esperando que o final seja a conclusão vitoriosa ideal para o conflito da história, talvez não seja bem o livro para você. Não me entenda mal, o final é maravilhoso, mas é devastador, triste e de certa forma desesperador. Reflete bem o enredo como um todo.
[SPOILERS MÍNIMOS ABAIXO]
Babel conta a história de um garoto cantonês que perde toda sua família remanescente para uma doença, em especial sua mãe. Ele é resgatado pelo Professor Lovell, que até então era apenas seu tutor, mas, ao longo da história, fica evidente que é seu pai. Lovell leva o rapaz para Londres, e o proporciona uma educação refinadíssima para que ele seja admitido na Universidade de Oxford, onde Lovell leciona. Lindo, emocionante, né? Acontece que, obviamente, as intenções de Lovell são bastante ilegítimas (quem diria, um inglês de 1830 sendo escroto?). Lovell faz com que o rapaz invente um nome inglês o suficiente para se encaixar na Inglaterra e ser mais bem-vindo, e o garoto escolhe Robin Swift (pelo menos ele não tem um jatinho).
Robin eventualmente entra em Oxford, especificamente na faculdade de tradução, no prédio chamado de Babel. Ali, trabalham todos os linguistas, em diversas áreas, mas a mais especial é a de trabalho com prata. É aqui que entra o aspecto fantástico dessa narrativa. A prata carrega um elemento mágico, em que se inscrevem palavras em línguas diferentes, e a prata captura aquilo que fica perdido na tradução, funcionando magicamente a partir daí. A Inglaterra toda usa este trabalho com prata para infinitos usos, desde a sustentação arquitetônica de pontes e prédios, até a produção de armas de fogo (uau! Quem diria?).
"Language was just difference. A thousand different ways of seeing, of moving through the world. No; a thousand worlds within one. And translation - a necessary endeavour, however futile, to move between them"
Robin faz amizade com três outros personagens: Ramy, um rapaz de Calcutá, por quem eu sinto que havia um romance recíproco; Victoire, uma garota haitiana negra que batalha constantemente com o entrelaçamento de suas duas características mais odiadas pelos europeus (ser mulher e negra); e Letitia, ou Letty, uma garota rica, branca e relativamente (muito) insuportável. Os quatro amigos constroem uma amizade ao longo do livro sustentada especialmente pelo elemento unificador de suas identidades: a opressão. E não é acidental que eles trabalham no edifício de tradução. É absolutamente construído e organizado pelo império inglês que os estrangeiros trabalhem para o império, disseminando suas línguas maternas às quais eles não têm acesso (algumas até são faladas por eles, mas ser nativo tem outros efeitos) e construindo materiais científicos e, nesse caso, literalmente trabalhando com a mágica da tradução. Veja, não é uma coincidência que Lovell tenha "salvado" Robin de sua condição e o tenha levado a estudar justamente aquilo que mais reforça a força colonial do império britânico.
Ao longo da história, Robin descobre a sociedade Hermes, que é uma sociedade secreta que objetiva roubar a prata de Babel e trabalhar para a distribuição dessa prata a quem necessita de fato (não o exército, por exemplo, mas pessoas doentes, como a mãe de Robin). Além disso, a sociedade trabalha para destruir progressivamente a potência imperialista de Babel. Reside, aqui, o grande conflito de Babel. Robin, dividido entre sua nova vida de estudos, amizades e amor pelas linguagens, tem que decidir entre a fidelidade à Universidade de Oxford e, portanto, ao império, e sua vida glamorosa, cheia de estudos e conquistas.
Mas o conflito nunca é realmente sobre a vida pessoal de Robin e seus princípios políticos. É sobre quem ele é, um rapaz cantonês que foi retirado, sem escolha, de sua vida e levado a um país estranho que o odeia para contribuir na construção e manutenção deste ódio; e sobre quem eles querem que ele seja, um rapaz "inglês" (wink wink) que trabalha para o império, fornecendo traduções à sua língua materna e ajudando a negociar guerras em favor da Inglaterra e contra seu país de origem, a China, além de criar uma produção científica para Babel.
Babel não é um livro fácil. Não é um livro para ler feliz. É um livro que reflete, discute e aprofunda densamente a discussão das ramificações do imperialismo nas relações inter e nacionais, mas vai muito além disso. Ele é, verdadeiramente, uma tese que comprova como o imperialismo não nos é alheio. Ele está em cada relação interpessoal, em cada livro, em cada produção científica, em cada tradução, e é nessas pequenas coisas que fica evidenciado que é nossa responsabilidade ver o imperialismo nas nossas vidas, e fazer o possível para não contribuir com ele, e mais ainda: fazer o possível para destruí-lo.
Letty, a amiga branca e rica, filha de um militar, personifica o colonialismo das relações sociais. Ela é a perfeita representação de que as origens, independentemente de suas vontades e seus amores, localizam os indivíduos nas dinâmicas de controle social e imperial. Letty é uma traidora, ela não é capaz de entender realmente como Robin, Ramy e Victoire não conseguem simplesmente agradecer pelas oportunidades de estudar em Oxford, trabalhar com o que amam e receberem uma bela pensão. Não, para Letty, o império não é um problema, desde que ela não precise pensar nele. O incômodo dela nunca é relativo aos verdadeiros incômodos que o império causa em suas vítimas (escravidão, por exemplo). O incômodo dela sempre parte de um desejo pela ignorância. Ela não quer que os amigos lutem contra o império, ela não quer saber dos problemas que ele causa inter e nacionalmente, e mais além ainda: interpessoalmente. Ela não quer saber disso, ela só quer relaxar e viver sua vida privilegiada, porque o que não a afeta pessoalmente não precisa nem passar pela cabeça dela. E vejam: ela nem é a pessoa ideal para o império: ela é mulher, ainda.
Enquanto isso, Robin, Ramy e Victoire são opostos polares dessa visão. Eles tinham todas as chances e vantagens de aceitarem a troca: podem ser livres, mas apenas trabalhando para o império. Mas eles simplesmente não conseguem fazer isso. Porque eles não são como Letty, eles não têm a opção de fingir não vir de onde vieram, de fingir não ouvir os comentários racistas e misóginos direcionados a eles ou a seus semelhantes. E é esta a perfeição deste livro. Ele destrincha todos os efeitos do colonialismo na vida íntima das pessoas. Ele mostra, por a mais bê que o que é político não está acima ou além do nosso dia-a-dia. Ele constrói nosso cotidiano, ele nos constrói enquanto pessoas, ele nos faz ser quem somos: mulheres, homens, brancos, negros, amarelos, gays, héteros, e tudo o mais que nós, por vezes, achamos que é só identidade, que é individual, mas é totalmente político.
Aliás, pego emprestado de minhas queridas feministas o slogan perfeito para definir este livro: o pessoal é político. E vou além: o pessoal é colonizado e colonizador. Mas ele também pode ser decolonizador. Ele pode destruir impérios.
"Power did not lie in the tip of a pen. Power did not work against its own interests. Power could only be brought to heel by acts of defiance it could not ignore. With brute, unflinching force. With violence"
Eu recomendei esse livro provavelmente para todo mundo com quem eu conversei nos últimos meses. Definitivamente plantei a sementinha de desejo pela leitura dele em mais de alguém nos últimos tempos. Ao menos me alegra pensar que eu possa ter feito isso. Espalhar esse livro para outros amantes da literatura, das letras e da luta decolonial é o mínimo que eu posso fazer para retribuir à Kuang o enorme favor à humanidade que ela fez ao escrevê-lo.
Este livro é gasolina no meu amor pela literatura. Obrigada, R. F. Kuang.
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